Uma democracia que forçosamente está por vir

28/08/2022 09:00
Por Leonardo Boff

Estamos todos empenhados em salvaguardar uma democracia mínima diante de um presidente desvairado que continuamente a ameaça. Como vivemos uma crise geral, paradigmática e irremissível, convém já agora sonhar com outro tipo de democracia.

Parto de um pressuposto, segundo dados de cientistas sérios, de que enfrentaremos dentro de poucos anos, devido ao acelerado e irrefreável aquecimento climático, grave risco de sobrevivência da espécie humana. A Terra será outra. Se quisermos continuar sobre este planeta temos que, por primeiro, minorar os efeitos danosos, com ciência e técnica e por fim, elaborar um outro paradigma civilizatório, amigável à vida e nos sentir irmãos e irmãs de  todos os demais seres vivos. Pois possuímos com eles o mesmo código  genético de base. Dizem-me: “Você é pessimista”! Respondo com Saramago: “não sou pessimista; a realidade é que é péssima.”

Já em 1962, a bióloga estadunidense Rachel Carson em seu famoso “A primavera silenciosa” (Silent Spring) advertia sobre a crise ecológica, já em curso, e concluía: “A questão consiste em saber se alguma civilização pode levar adiante uma guerra sem tréguas contra a vida sem destruir a si mesma e sem perder o direito de ser chamada de civilização.” A grande maioria não tem consciência da real situação ecológica da Terra. Por isso, de sermos incômodos e da urgência de falarmos destas coisas; de suscitarmos a consciência de estarmos preparados e de acolhermos mudanças imprescindíveis, caso queiramos continuar sobre o planeta Terra. 

Dentro deste contexto realista proponho a atualidade  de um outro tipo de democracia: a socioecológica. Ela representaria a culminância do ideal democrático. É uma utopia? Sim, mas necessária.

Subjacente a ela vigora também ideia originária de toda a  democracia: tudo o que interessa a todos e a todas deve ser pensado e decidido por todos e por todas. Isso se  fará de várias modalidades.

Há uma democracia direta em pequenas comunidades. Quando maiores, projetou-se a democracia representativa. Como, geralmente, os poderosos a controlam, propôs-se uma democracia participativa e popular na qual os do andar de baixo podem participar na formulação e acompanhamento das políticas sociais. Avançou-se mais e descobrimos a democracia comunitária, vivida pelos povos andinos, na qual todos participam de tudo dentro de uma grande harmonia ser humano-natureza, o famoso “bien vivir”. Viu-se que a democracia é um valor universal (N.Bobbio) a ser vivida cotidianamente, uma democracia sem fim (Boaventura de Souza Santos). Face ao risco do colapso da espécie humana, todos, para se salvarem, se  uniriam ao redor da superdemocracia planetária (J.Attali).

Mais ou menos nessa linha, penso numa democracia socioecológica. Os sobreviventes das mutações da Terra, que estabilizaria o seu clima médio por volta de 38-40 graus Celsius, estes, como forma de sobrevivência, forçosamente, terão que se relacionar em harmonia com a natureza e com a Mãe Terra. Daí se proporiam constituir uma democracia socioecológica. É social por envolver a toda a sociedade. É ecológica, porque o ecológico será o eixo estruturador de tudo. Não como uma técnica para garantir a sustentabilidade do modo de vida humana e natural, mas como uma arte, um novo modo de convivência terna e fraterna com a natureza. Não obrigarão mais a natureza a se adaptar aos propósitos humanos. Estes se adequarão aos ritmos da natureza, cuidando dela, dando-lhe repouso para se regenerar. Sentir-se-ão não apenas parte da natureza, mas a própria natureza. De sorte que, cuidando dela, estão cuidando de si mesmos, coisa que os indígenas já sabiam desde sempre.

Esse tipo de democracia socioecológica possui uma base cosmológica. Sabemos pela nova cosmogênese, pelas ciências do universo, da Terra e da vida que todos os seres são interdependentes. Tudo no universo é relação e nada existe fora da relação A constante básica que sustenta e mantém o universo ainda em expansão  é constituída pela sinergia, pela simbiose e pela inter-retro-relacionalidade de todos com todos. Mesmo a compreensão de Darwin da sobrevivência dos mais adaptados se inscreve dentro desta constante universal. Por isso, cada ser possui o seu lugar dentro do Todo. Até o mais débil pelo jogo das interrelações tem sua chance de sobreviver.

A singularidade do ser humano, e isso foi comprovado pelos neurólogos, geneticistas, bioantropólogos e cosmólogos, é comparecer como um ser, nó-de-relações, de amorosidade, de cooperação, de solidariedade e de compaixão. Tal singularidade aparece melhor quando a comparamos com os símios superiores dos quais nos diferenciamos em apenas 1,6% de carga genética. Eles possuem também uma vida societária, mas se orientam pela lógica da dominação e hierarquização. No entanto, nós nos diferenciamos deles pelo surgimento da cooperação e da solidariedade. Concretamente, quando nossos ancestrais humanóides saíam para buscar seus alimentos, não os comiam individualmente. Traziam-nos para o grupo e viviam a comensalidade solidária. Esta os fez humanos, seres de amor, de cuidado e de  cooperação.

A ONU já admitiu que tanto a natureza quanto a Terra são sujeitos de direitos. São os novos cidadãos com as quais devemos conviver amigavelmente. A Terra é uma entidade biogeofísica, Gaia, que articula todos os elementos para continuar viva e produzir todo tipo de vida. Num momento avançado de sua evolução e complexidade, ela começou a sentir, a pensar, a amar e a cuidar. Surgiu, então, o ser humano, homem e mulher que são a Terra pensante e amante.

Ela se organizou em sociedades, também democráticas, das mais diferentes formas. Mas hoje, porque soou o alarme ecológico planetário, devemos, com sabedoria,  forjar uma democracia diferente: a  socioecológica nos termos referidos acima.

Se quisermos sobreviver juntos, esta democracia se caracterizará por ser uma cosmocracia, uma geocracia, uma biocracia, uma sociocracia, enfim, uma democracia ecológico-social ou socioecológica. O tempo urge. Devemos gerar uma nova consciência e nos preparar para as mudanças e adaptações que não tardarão em chegar.

Leonardo Boff escreveu com Jürgen  Moltmann, “Há esperança para a criação ameaçada?”, Vozes, 2014.

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