Vale do Cuiabá: sobreviventes da tragédia tentam reconstruir a vida à espera de respostas
Você lembra o que fez na madrugada do dia 12 de janeiro de 2011? Grande parte da população de Petrópolis, sim. De alguma forma a vida de todas as pessoas que moram na cidade foi marcada por esse dia. O noticiário, na época, dava conta das informações sobre as dezenas de mortos, desaparecidos, desalojados e desabrigados e tentava mostrar o pesadelo que os sobreviventes da tragédia viveram naquela noite. Passados 10 anos, a vida dessas pessoas nunca mais foi a mesma. Além das duras consequências do esquecimento dos governos, eles vêm, ao longo desses anos, tentando reconstruir o tecido social que foi rompido.
Alguns poucos conseguiram novos trabalhos e se restabeleceram financeiramente. Outros ainda esperam um acordo na Justiça para que o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) indenize os proprietários. E grande parte ainda depende dos benefícios de Aluguel Social e Auxílio Aluguel, no valor de R$ 500, concedidos pelos Governo do Estado e Prefeitura. Uma política emergencial de moradia que já dura dez anos. Entre a injustiça e o descaso, esses sobreviventes vêm tentando descobrir uma forma de continuar e de serem resilientes.
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Jovelina de Jesus Murta, de 58 anos, morava na Comunidade do Borges, uma área cedida por um proprietário local para a ocupação de algumas famílias, mas que para os órgãos oficiais ela não existia. A comunidade não estava mapeada, e isso dificultou até mesmo o socorro no dia da tragédia.
“Eu falei: meu Deus, como que nós vamos sair daqui? Não tinha lugar. Nós ficamos isolados. Sem alimentação, sem nada. Os bombeiros passaram, nós fizemos sinal para eles e eles levaram as coisas para a gente. Eles acharam que lá não tinha ninguém, porque falaram que lá tinha acabado tudo”, conta Jovelina. Quando a água começou a invadir as casas no início da madrugada, as famílias que moravam na Comunidade do Borges se abrigaram na parte mais alta da propriedade, em um estrumeiro (um local para guardar estrume dos cavalos) durante toda a noite.
Somente quando amanheceu foi possível ver a dimensão da destruição. Das quinze construções na Comunidade do Borges, apenas quatro ficaram de pé, e foram interditadas pela Defesa Civil dias depois. “Eu fui para o abrigo uma noite só, não aguentei. Porque vi casos piores do que o meu. E falei: meu Deus, entrou água na minha casa? Entrou. A gente está sem luz, sem água, sem nada, mas a minha casa está lá. Mas tem gente aqui que perdeu parente, perdeu tudo. Ai eu pensei: eu estou ocupando a vaga de uma pessoa que precisa. Ai pegamos e voltamos para casa de novo”, conta.
Jovelina, seu esposo, dois filhos e o genro, ainda moraram por meses na casa interditada. Com a incerteza se teriam direito ao benefício do aluguel social, e o medo de perder a propriedade que, ainda que estivesse em área de risco, foi construída com sacrifício pela família, há mais de 30 anos. Mas após uma segunda chuva, parte do terreno da casa cedeu e a Defesa Civil interditou novamente o imóvel. Jovelina passou a receber o aluguel social, e se mudou para a Posse.
Ao longo desses anos, ela vem tentando reconstruir sua vida. Em 2019, foi sorteada para ocupar um dos apartamentos do Conjunto Habitacional Vicenzo Rivetti, o primeiro conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida para a faixa 1, que tem o objetivo de ajudar a suprir o deficit habitacional de 47 mil famílias na cidade. E, principalmente, garantir moradia digna para as mais de mil famílias que estão beneficiárias do aluguel social nesta longa espera pela moradia própria.
Jovelina vive, hoje, em um dos apartamentos do Condomínio 1 do Vicenzo Rivetti, que também sofreu atrasos na entrega das unidades, sendo ocupado apenas em novembro de 2020. Mas a experiência de sobreviver a uma tragédia, sem dúvidas, deixou marcas. “A gente nasceu de novo, temos muito o que agradecer a Deus. Porque poderia ter acontecido algo pior. E é uma coisa que a gente nunca vai esquecer. Principalmente a gente vendo uma pessoa amiga da gente de muitos anos passando ali morta, carregada pelo bombeiro. É uma coisa que as vezes a gente para e fica pensando: se a gente está aqui hoje tem que agradecer”, disse.
Dez anos de espera por cumprimento de promessas
Quem entra, hoje, na loja de materiais de construção que fica no Boa Esperança, no Vale do Cuiabá, encontra atrás do balcão um homem com cabelos grisalhos, de estatura baixa, usando óculos, simpático, com tom de voz baixo e olhos expressivos de quem guarda na memória uma história de força e resistência. O nome dele é Adalberto Cabral Motta, de 62 anos. No dia 12 de janeiro de 2011, ele estava em segurança, na casa onde mora até hoje, próximo da sua loja. Mas sua família morava no ponto final do Vale do Cuiabá. Uma área que se transformou em um pasto. Todas as 23 casas que foram construídas no local foram varridas pela enxurrada daquela noite.
Naquela madrugada, Adalberto conseguiu falar com a sua mãe que disse que chovia muito e o rio estava levando tudo. “Quando ela falou tudo, a gente não entendia o que era o tudo”, lembra Adalberto. A rua ficou bloqueada pela lama, barreiras, árvores, lixo e tudo mais que a água encontrou pelo caminho, e ele não conseguiu passagem para ir até a casa da mãe na madrugada. Na manhã seguinte, quando conseguiu chegar no final do Vale do Cuiabá, em meio ao desespero e o desnorteio pela situação, Adalberto descobriu que sua mãe, seus dois irmãos, um tio e o genro do tio tinham morrido na tragédia.
“Nesse período tudo congela, a gente tenta se manter em pé, mas congela o raciocínio. Lá a gente age por instinto, fisicamente você está igual um leão, mas psicologicamente nada. Então eu fiquei congelado. Só fui descongelar em 2014. Nesses anos trabalhava mecanicamente, foi a única maneira que consegui de me manter em pé, fora isso é difícil”, contou Adalberto.
Nascido e criado no Vale do Cuiabá, Adalberto mantinha uma mercearia próximo a casa da sua mãe, que foi carregada pela água. Uma vida que ele nunca imaginou que terminaria ali. “Geralmente todo mundo pensa em trabalhar e depois vir para o interior e ficar sossegado, e eu era o contrário. Eu estava bem aqui, estava tranquilo. Não tinha objetivo nenhum. Hoje é exatamente o oposto, não penso em ir pra lá. Evito ir. Tenho até projetos pra fazer lá (no terreno da família), mas tem que ser tudo a distância. Passaram dez anos, pode ser que passe mais um tempo e eu consiga voltar lá”, contou.
Adalberto teve que, pela primeira vez, procurar um emprego, porque sempre trabalhou por conta própria. Além do trauma emocional, tinha que reconstruir a vida. Os terrenos da sua família no final do Vale é um dos tantos que ainda não recebeu a indenização prometida pelo Inea. Em 2013, após várias tentativas de acordo na Justiça, Adalberto aceitou a oferta. “O Inea alega que a empresa que fez o acordo não estava habilitada”, contou. Para ele as opções dadas pelo Inea eram a de indenização ou a compra assistida. Nenhum dos dois foi possível, pela dificuldade de chegar a um acordo, e quando o acordo foi aceito, não foi cumprido.
Em todo o Vale do Cuiabá, 226 casas foram demolidas pelo Inea, até por ter sido uma das exigências para que os proprietários tivessem o direito a indenização ou a compra assistida, prometidas na época. Após as demolições, o terreno do Adalberto se transformou em um pasto. A natureza se regenerou na maior parte do Vale. Um lugar silencioso e triste, com a memória do rastro de destruição. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH) assiste juridicamente algumas famílias desde a tragédia. Muitas, até hoje, não conseguiram sequer o benefício do aluguel social.
“Muita gente não tinha nenhum título de propriedade. E perderam tudo, não tinham xerox de nada, não tinham documentação. Famílias que tinham dificuldade até para provar que os familiares tinham morrido”, lembra Carla de Carvalho, coordenadora do CDDH.
Embora muitas instituições tivessem se voltado para o Vale do Cuiabá na época, os sobreviventes não receberam nenhum tipo de assistência psicológica. E ao longo dos anos, foram caindo no esquecimento. Para o CDDH, ao longo desses dez anos, as conquistas da população não foram fáceis. Os resultados muitas vezes não foram os esperados, pois não se conseguiu mudar muito os planos do Estado sobre as remoções e evitar os gastos públicos dispensáveis que foram produzidos desde aquela época.
Para o CDDH, foi diferente do que aconteceu com as famílias de classe média e os ricos afetados pelo desastre: articularam defesas individuais e conseguiram receber as indenizações à que tinham direito, reconstruindo sua vida financeira de maneira mais rápida. Aos mais pobres, sobrou a cobrança política e jurídica a partir da Defensoria Pública, contando com toda a morosidade da justiça e dos órgãos públicos direcionados a este episódio.