Vida de contraste inspira livro de Stepan Nercessian

07/04/2021 08:00
Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

Certa vez, o ator – e agora escritor – Stepan Nercessian teve que subir a Rocinha, uma das maiores comunidades do Brasil, na zona sul do Rio de Janeiro, para ir à casa de uma costureira. Ao chegar à entrada da favela, um gari se prontificou a ajudar a encontrar o endereço. Chuviscava – um tempo que não agrada muito aos cariocas – e a subida ficou mais difícil.

Antes de chegar ao destino, o cicerone do ator passou em casa. Foi recebido com beijos e abraços pelos seis filhos. “Pareciam bolinhas penduradas em árvores de Natal. Pensei: esse cara é ignorado por muitos lá embaixo, nem olham para ele. Mas ele tem quem o quer bem”, diz.

Essa “riqueza do dia a dia”, como Stepan chama, é o que ele mostra em seu primeiro romance, Garimpo de Almas, que acaba de publicar pela editora Tordesilhas.

“Há uma tendência de procurarmos e enxergarmos só super-heróis. Nega-se o olhar para as pessoas mais comuns. Como essas pessoas enxergam a vida e como eles são enxergados pelos outros?”, indaga Stepan, de 67 anos, em entrevista ao Estadão.

Escrito de forma fragmentada, o romance apresenta um narrador-personagem que, já no fim da vida, sozinho, começa a refletir sobre a própria existência. Entre cigarros e bebidas, ele se arrepende de não ter corrigido a vida aos poucos. Reluta em escutar as almas que invadem seu apartamento e pedem para que suas histórias sejam contadas.

Ao finalmente dar passagem para elas, surgem narrativas que envolvem decepções, ilusões, perdas, depressão, suicídio, bullying, assédio sexual, polarização política, entre outros temas.

Todos esses personagens fazem um balanço de suas existências. E, sobretudo, do que deixaram de viver. “O amor havia morrido no dia anterior”, diz um deles. “Um cachorro no cio, porém castrado”, define-se outro.

A alma pode ser uma viúva que precisa provar que está viva para continuar a receber a pensão que o marido lhe deixou. Ou um faxineiro que trabalha em um escritório no qual se lava dinheiro e que não vê muito sentido em um movimento de artistas para limpar as praias.

Ou Nancy, a jovem criada com carinho e cristianismo, que caiu no mundo das drogas. Ainda pode ser um homem que matava passarinhos na infância e que na idade adulta deu fim à vida do pai.

A morte, aliás, está sempre por perto. Muito perto. Nascido em Cristalina, no interior de Goiás, filho de um garimpeiro, Stepan diz que, como em toda cidade pequena, o fim da vida de alguém sempre foi um acontecimento, diferente do que acontece hoje, sobretudo nos grandes centros urbanos.

“Vivo com os contrastes muito fortes dentro de mim. A vida e a morte. A alegria e a tristeza. O dia de sol e o de chuva. O sucesso e o fracasso. Às vezes tenho a sensação de que querem sempre extinguir um dos lados para facilitar a compreensão do outro. Não me policio para escrever. Se a morte vem, escrevo. Todo mundo fala da qualidade de vida. A qualidade da morte também é importante. Muita gente se surpreende quando lê porque me conhece como um grande brincalhão”, diz Stepan.

O cineasta Cacá Diegues, que assina o prefácio, chama a atenção para essa característica de Stepan, a quem define com estilo “sólido e original”. Escreve que o livro é “pessimista, tenso, com humor sarcástico e amargo. Cheio de referências ao que poderia ser tenebroso (mas não é)”.

Stepan afirma que a sensação de estrear uma peça ou estar no elenco de uma novela é diferente do processo de lançar um livro, sobretudo o primeiro. “Escrever é um processo solitário que só se completa na hora em que o livro é impresso e vira um objeto para chegar às mãos do leitor. Fico com vontade de ligar para todo mundo e perguntar o que estão achando”, diz.

Revisor

Stepan conta que sempre teve muita facilidade em ler. Quando entrou na escola para ser alfabetizado, decifrou a cartilha quase toda em uma semana. Na adolescência, mergulhou nas histórias do brasileiro Jorge Amado e do argentino Julio Cortázar. Arriscou-se nas obras de Karl Marx, mesmo sem entender direito o que o filósofo defendia.

Aos 12 anos, começou a trabalhar no jornal semanal goiano Cinco de Março. No começo, era um faz-tudo. Depois, passou a assistente de revisor e, posteriormente, a titular do cargo.

“Eu ficava encantado em participar daquele processo de ler antes em voz alta o que iria sair na edição. Quando pegava o jornal pronto, ficava orgulhoso. Ali também vi que era possível escrever. Escrevi para esse jornal e para suplementos literários”, diz.

Nesse período, conviveu com os jornalistas e intelectuais da cena local, como Carmo Bernardes e Bernardo Élis, que já tinham livros publicados. Só não gostava de gramática. Diz que até hoje não sabe as regras da escrita – apenas por intuição.

Com 15 anos, já estava fora da escola para seguir a carreira de ator. O trabalho no jornal e os livros supriram a formação acadêmica. No Rio de Janeiro, aos 17, estreou no cinema como protagonista do filme Marcelo Zona Sul, do diretor Xavier de Oliveira, em 1970. Logo foi para o teatro e para a televisão. De presente, ao completar 18 anos, ganhou do ator José Wilker obras de Constantin Stanislavski e Anton Chekhov.

Após colocar o ponto final em Garimpo de Almas, que ele escreveu entre 2018 e 2019, Stepan decidiu entrar de vez para o mundo da literatura. Lembrou-se das palavras do seu chefe no jornal, Batista Custódio, um sujeito muito austero, segundo ele, que telefonava e pedia para ele não abandonar a escrita – quando ele foi para o Rio se dedicar às artes cênicas.

“Ele me dizia que o que iria para a posteridade era o que eu escrevia. Foi meu grande incentivador. Eu que, por medo de misturar as coisas, deixei essa vontade de escrever de lado por todos esses anos. Ainda não tenho a disciplina de um escritor, mas o primeiro já saiu”, diz.

No ano passado, quando a quarentena se fez necessária, Stepan se dedicou a escrever poemas. Cem ao todo. Não sabe ao certo o que irá fazer com eles. No momento, escreve outro romance que já tem título: Casa Amarela.

Pronto mesmo está – esse, com bastante humor – o Guia Prático Para Inadimplentes e Negativados, que agora ganhará um novo capítulo que abordará o confinamento. “Ensino como sobreviver no meio da inadimplência. Mostro o quanto esse circo capitalista invadiu a vida das pessoas e se tornou quase uma tortura”, diz.

No momento, o ator grava uma participação na série Cine Holliúdy, da TV Globo. Mostra-se preocupado com os colegas de profissão, com a escassez de trabalho por conta da pandemia. “Nos últimos anos, promoveram um massacre contra os artistas, linchamento, suspensão de financiamentos. Já vínhamos de uma situação ruim. Agora, ficou péssima”.

GARIMPO DE ALMAS

Autor: Stepan Nercessian

Editora: Tordesilhas (216 págs., R$ 44 papel, R$ 29,60 e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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