Vida de índio

05/02/2023 08:00
Por Ataualpa A. p. Filho

A indignação não tem fronteiras, nem está limitada à contemporaneidade.  Quando vi as manifestações de repúdio diante das notícias veiculadas internacionalmente sobre o estado crônico de desnutrição de crianças indígenas nas tribos yanomamis, localizadas no Estado de Roraima, dei uma olhada no retrovisor da história para trazer à memória outras tribos que sofreram com ações genocidas: Apache, Comanche, Maias, Astecas, Incas…

Não foram somente os índios brasileiros que sofreram com as ações de homens tidos como civilizados que exploram terras, dizimando populações nativas. Peço desculpas aos fãs de faroestes, mas não vejo graça em filmes que têm como cenário o “velho oeste” em que “homens brancos” massacram índios, quando estes lutam em defesa de suas terras. Não sou fã de John Wayne. Nunca terei Winchester em casa.

A terra para a população indígena é um elemento sagrado, porque é uma questão de sobrevivência. Não há como conceber uma comunidade indígena sem o cultivo da terra, sem a pesca, sem a caça, sem a preservação de suas tradições em reverência aos antepassados. 

Cito aqui um trecho da carta escrita em 1855, pelo cacique Seattle da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviada ao presidente dos Estados Unidos na época:

“Nós mesmos sabemos que o homem branco não entende nosso modo de ser. Para ele um pedaço de terra não se distingue de outro qualquer, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, depois que a submete a si, que a conquista, ele vai embora, à procura de outro lugar. Deixa atrás de si a sepultura de seus pais e não se importa. A cova de seus pais é a herança de seus filhos, ele os esquece. Trata a sua mãe, a Terra, e seus irmãos, o céu como coisas a serem compradas ou roubadas, como se fossem peles de carneiro ou brilhantes contas sem valor. 

Seu apetite vai exaurir a terra, deixando atrás de si só desertos. Isso eu não compreendo. Nosso modo de ser é completamente diferente do vosso. A visão de vossas cidades faz doer aos olhos do homem vermelho”.

Garimpo ilegal, desmatamento, queimadas, poluição dos rios, caça predatória são ações de quem trata a Terra como inimiga. Quem valoriza a vida sabe que não há como mantê-la sem uma relação harmoniosa com o meio ambiente. E aqui cabe mencionar mais um trecho da carta do sábio cacique Seatle:

 “Quando o homem cospe sobre a terra, está cuspindo sobre si mesmo. De uma coisa nós temos certeza: a terra não pertence ao homem branco; o homem branco é que pertence à terra. Disso nós temos certeza. Todas as coisas estão relacionadas com o sangue que une uma família. Tudo está associado. O que fere a terra fere também aos filhos da terra. 

O homem não tece a teia da vida: é antes um dos seus fios. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio.”

É importante ressaltar que a morte por inanição não ocorre somente em terras indígenas. Na periferia urbana, a miséria também ceifa vidas prematuras. O que se evidenciou nas tribos dos yanomamis é possível encontrar em outros países, principalmente no continente africano. O descaso com os menos favorecidos, a ganância movida pelo desejo de enriquecimento a qualquer custo cegam, por isso que sempre estaremos diante dos reflexos provenientes das desigualdades sociais, das políticas insensíveis que não ouvem o clamor do povo que pena nas filas dos hospitais, que estende a mão a pedir comida tanto nos centros urbanos como nas zonas rurais.

Entre as ações solidárias, encontram-se também o posicionamento crítico, a indignação diante da inoperância, da omissão, da insensibilidade de gestores públicos que procuram atender somente a exigências do mercado, monopolizado por oligarquias que visam apenas aos interesses próprios.

Já folclorizaram demais a vida dos povos nativos. Índio não quer apito, nem espelho. Índio quer viver dignamente em terra própria para produzir o alimento indispensável à sobrevivência do seu povo.

Na ficção literária, encontramos heróis indígenas bem distantes da realidade vigente.  A desnutrição crônica de crianças que vivem nas zonas rurais, nas periferias urbanas, nas terras indígenas só revela a face da exploração de um sistema sociopolítico voltado para o capital que menospreza a dignidade humana.

Selvagem é esse sistema governamental reprodutor da miséria. Sei que tenho uma indignação crônica nascida na peleja nordestina. A fome aqui é uma velha conhecida que nos atormenta diariamente, por isso a nossa indignação é permanente.

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