28/05/2022 22:37
Por Gastão Reis

O mês de maio é apropriado para abordar temas referentes à escravidão e à abolição face ao 13 de Maio de 1888, data que precisa ser melhor explicada dada a superficialidade com que, por vezes, é abordada.

Tomemos a figura do Zumbi em seu devido tempo histórico. Algumas informações são contraditórias, mas existem outras que o duro chão da realidade comprova. Palmares teve início por volta de 1580 e durou cerca de um século. Estamos falando de uma época entre o fim do século XVI e quase todo o século XVII. A escravidão no mundo, inclusive na própria África, era tida como um fato normal da vida. Tinha um histórico de mais de cinco mil anos, se tomarmos o período de 3 a 4 mil anos antes de Cristo, quando a humanidade passou a ter memória escrita.

O primeiro registro a ser feito era que a revolta dos escravos foi ativa desde o início da imensa colônia portuguesa nas Américas. Ou seja, a visão de passividade do negro não se sustenta, mesmo porque os quilombos sempre estiveram presentes ao longo de nossa história até a assinatura da Lei Áurea. Mas isso não nos permite afirmar que Zumbi tivesse uma visão diferentes daquela de que a escravidão era parte natural da vida. Na Europa, a luta ativa para pôr fim à escravidão só teve início no século XIX em que surgiram na Inglaterra e em outros países as primeiras associações contra a escravidão.

O modelo vigente em toda África, que também existia em outras partes do mundo, era de lutas tribais em que a tribo vencida se tornava escrava da vencedora. Esta, por sua vez, vendia os integrantes da tribo vencida no mercado de seres humanos. Podemos pensar também no que acontecia entre gregos e romanos em sua época, que procediam da mesmíssima maneira em relação aos vencidos em campos de batalha. E esse padrão perdurou por séculos. A visão da escravidão como algo inaceitável só ocorreu nos últimos dois séculos.

Estudos recentes e mais antigos confirmam o fato de Zumbi ter tido escravos em Palmares. Óbvio que, desde sempre, os escravizados almejavam sua liberdade, mas não lhes passava pela cabeça que todos pudessem ser livres. O ideal de muitos era ter seus próprios escravos, pois a vida era assim. E ponto. O volume I da trilogia de Laurentino Gomes, “Escravidão”, autor de 1808, 1822 e 1889, nos capítulos 28 e 29, ele nos fala de Palmares e de Zumbi, e respalda o que foi dito acima. Uma eventual vitória de Zumbi, em bases permanentes, não iria mudar sua visão de mundo de acabar de vez com a escravidão.

Passemos agora ao mundo da Princesa Isabel, que já foi criada em tempos em que a escravidão passou a ser vista como algo inaceitável. Cabe relembrar que sua tutora por oito anos, a Condessa de Barral, dona de dois engenhos de açúcar, era abolicionista. E teve obviamente influência sobre Isabel nessa direção em seu período de formação. (Marxistas não têm uma boa explicação para essa “traição” a seus interesses de classe.) É fato que o exemplo lhe veio também de seu pai. D. Pedro II libertou todos os escravos da Casa Imperial por volta de 1838, passando a lhes pagar salários.

Demoramos muito a nos dar conta do apagão proposital de nossa memória histórica levada adiante pela república desde 1889. Eu mesmo só acordei para o fato, no início da década de 1980, quando li os três volumes da “História de Dom Pedro II”, de Heitor Lyra, e as obras do historiador José Murilo de Carvalho. Este estado de coisas levou a uma visão sobre a escravidão como tendo sido uma mancha que nos persegue desde sempre sem fazer uma clara distinção entre o que aconteceu no Império e na república.

O Brasil foi uma exceção em matéria de alforrias, cedidas ou compradas, desde os tempos coloniais, em relação ao que ocorria no resto do mundo. Por volta de 1780, a capitania de MG era a mais populosa, com 394 mil habitantes. Destes, 174 mil eram escravos. Mas dos 220 mil restante, dois terços eram compostos por negros forros que tinham alcançado a própria liberdade.

Vejamos agora as atitudes tomadas pela Princesa Isabel em direção à abolição da escravidão. Foi um processo paulatino, mas permanente, que evitou algo semelhante à guerra civil americana que ceifou cerca de 630 mil vidas humanas, bem mais do que os EUA perderam em cada uma das duas Guerras Mundiais na primeira metade do século XX.

Sob as três Regências de Isabel, aconteceram feitos importantes, como o primeiro censo demográfico do Brasil, de 1872, em que foi computada a existência de 1.510.806 escravos, número que caiu para 720.000 na última matrícula geral, de 30.03.1887, uma queda de mais de 50% no total de escravos no curto período de 15 anos. Pouco antes, em 1871, Isabel assinou a Lei do Ventre Livre, que embutia um fundo de alforrias e a permissão para que escravos pudessem ter conta de poupança na Caixa Econômica, origem do pé de meia com que muitos adquiriram sua liberdade.

Não foi só isso. Para fazer passar a Lei Áurea, em 1888, Isabel forçou a troca do presidente do gabinete (hoje, primeiro-ministro). O Barão de Cotegipe foi substituído por João Alfredo. Cabe registrar que as leis abolicionistas foram todas passadas por gabinetes conservadores. Sua determinação era tal que chegou afirmar que “Mil tronos houvera, mil tronos perderia para libertar uma raça”. Ela conhecia a fundo as agruras de ser brasileiro e escravo.

É certo que a Princesa Isabel soube pôr em prática o dito “Uma ideia (a abolição) cujo tempo havia chegado”. Algo que nos tempos de Zumbi estava tão fora de cogitação que ele mesmo achava natural ter escravos. Mas há que se reconhecer um outro dito, citado pelo escritor Angelo Romero, a quem sucedi na Academia Petropolitana de Letras, em seu romance “Versões e Fragmentos”: “O destino só oferece carona a quem, na estrada, estica o braço”.

A Princesa Isabel esticou o braço, e moveu as pernas, corpo e mente para realizar seu sonho, que não era só dela, mas de toda a Nação Brasileira.

Nota (*): Vídeo do autor, “O nascimento de Portugal e o nosso”, no DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS. Basta clicar no link abaixo para assistir: https://www.youtube.com/watch?v=6GggVQb9NGw&t=12s

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